A trilha nossa de cada dia
O ápice de Dani California divide as atenções com a sinfonia do bizarro. Trilhar o caminho mais barato e rápido até em casa tem lá suas peculiaridades.
Sete e meia da noite é hora em que a fauna espera ansiosa pela abertura das porteiras automáticas. E o atropelo começa, como se não houvesse amanhã. É o instinto miserável berrando “sai da frente, minha necessidade é maior que a sua!” As grávidas, as com criança no colo e os deficientes que procurem alguém com boa educação. Óculos escuro, um sono repentino ou um fone de ouvido, todos salvam nessa hora. Meu ouvido mistura o auge da quebradeira com o ritmo frenético de pessoas entrando e saindo. O cara rindo sozinho, a gordinha mergulhada num fandangos de presunto com Coca-cola.
O telefone toca, engano. Só pra interromper o esmerilhar da gaita. Pink. As unhas da menina sentada ao meu lado são assim. Exceto a do meio, que é dourada. Vai entender.
O ventilador de teto leva a minha paciência pra bem longe. Já não basta a gangue dos Janela Fechada pra sufocar o pouco ar que divido com o mundo inteiro dentro do vagão.
Alright. Acho que não. Ao tirar um dos olhos do papel, me deparo novamente com o Circo dos Horrores. A da unha dourada pensa que meu ouvido está disponível pro pagodinho dela.
A cada estação, eu me convenço mais de que “tem gente que acha que é bonito ser feio”. Gente que se acha a bolacha mais recheada. E quanto recheio, transborda o piercing do umbigo, o cós da cintura baixa e do baixo nível.
Highway to Hell. Já estamos no meio do caminho e no fim da tolerância. Cheiro de Cheetos Bolinha. Paciência. É preciso muito esforço pra fingir tê-la.
Será que 2012 já chegou e esqueceram de avisar? É o fim. Da linha e da picada. Pelo menos até amanhã cedo.
O Encantador de Carnes
Naquela cumbuca pendurada, ninguém mais metia a mão. Ela ficou famosa por moer o dedo dos curiosos. Dos fuxiqueiros. Daqueles que se preocupavam mais com a vida dos outros do que com a integridade de suas mãos. A quantidade de dedos desfiados mostrava o quanto a falta de bom senso repartia aquela cidade e demonstrava, através de sinais físicos, a moral do seu povo.
A distância da cumbuca era uma lição que martelava em todas as cabeças. Pelo menos até o dia em que todas despertaram com um mugido de rasgar ouvidos, seguido de uma voz grave que anunciava “O encantador de carnes chegou”. “Abram suas portas, dêem boas-vindas ao pedaço mais saboroso da cidade”. A voz vinha de um jovem franzino, desacreditado de sua imponência vocal. Era o açougueiro estrangeiro, que estava abrindo as portas da sua Boutique de Carnes naquela cidade que não dava boas-vindas ao desconhecido.
Agora a cumbuca fazia parte do passado. Quem era esse rapaz? Ou melhor dizendo, quem ele pensava que era pra chegar assim, invadindo território?
– Quanta pretensão! Dizia a senhora com cara de sono e bobs no cabelo.
– Como o prefeito não mandava prender um desaforado desses! Estufava o peito o senhor de pijama listrado, tragando seu Charm com os dois dedos que lhe sobravam inteiros.
O som do burburinho trouxe o desconforto e a certeza de que a cumbuca não havia dado conta de acalmar essa gente fuxiqueira. Na manhã seguinte, os cidadãos foram acordados com ópera, num tom tão agudo que, mais do que rasgar, retalhou os tímpanos. A partir de então, todos ouviam a mesma melodia, tão intensa que o cérebro ameaçava partir-se em pedaços.
Mesmo atordoados, ainda sobrava lucidez para as críticas.
– Que raio de som é esse? Indagava a jovem com o cachorro no colo.
– Ãh? Não estou ouvindo nada! Dizia o namorado espinhento.
Findou-se mais um dia e as ideias começaram a fazer fila na cabeça do encantador de carnes. O sol nasceu e as campainhas tocaram. Uma bandeja e o cartão “Saboreiem, vão faltar palavras!” guardavam um suculento e generoso naco de filé. Passadas algumas horas, o recado dado podia ser apreciado no meio da praça: gritos silenciosos de quem perdera não só os dedos e a audição, mas agora a fala.
– Jorge! Jorge! Tudo bem com você? Pergunta Marcos, apavorado.
– Ãh…acho que me distraí quando aquela gostosa pediu a picanha…
Marcos vê sangue escorrendo ao lado, desvia o olhar e logo percebe o generoso talho no indicador de Jorge.
O despertar de um homem
Naquela noite o Pub Fiction recebia um show inédito. Lily e Bety, as gêmeas da cinta-liga. Ruivas e estonteantes. Abrem-se as cortinas. A meia-luz coberta pela névoa do tabaco é invadida pelos holofotes e luzes coloridas. As coxas torneadas de Lily aparecem ao mesmo tempo que as de Bety saindo das coxias. Elas seduzem com seu rebolado e suas curvas bem definidas.
Lily usa um corpete vermelho. Bety está toda de negro, com uma rosa vermelha presa na perna. As gêmeas arrancam suspiros dos homens presentes, e também gargalhadas. Elas dançam de um jeito engraçado. Como duas marionetes, seus movimentos são simétricos, bem marcados. Os olhos de Roberto dançam junto com as moças, no mesmo compasso, para lá e para cá. Ele está tão enfeitiçado, que mal percebe a aproximação de Bety. A ruiva de negro estende sua perna e fixa seus olhos nos dele com malícia, fazendo um convite silencioso: Leve essa rosa e jamais me esquecerá.
O momento é interrompido por um som estranho, mas familiar para Roberto. De repente, ele não vê mais Bety, nem a rosa. Tampouco avista o palco, seu uísque e seu cigarro. Ao seu lado estão o criado-mudo e dois ponteiros lhe dizendo que são seis horas da manhã. Roberto levanta de uma só vez, como se a cama o expulsasse. Corre para o chuveiro. Às oito horas está marcada a apresentação da campanha de inauguração do novo cliente: Das Gêmeas Lingeries e Acessórios.
Contra o tempo
É domingo e um ninho gigante posicionado bem no canto da minha cama me lembra que a Páscoa chegou. Minha mente logo já cria o cenário: o coelho branco e fofinho entrou em casa pelas grades do pátio. Ou talvez, em um impulso, tenha conseguido saltar o telhado até o meu quarto, entrando pela janela do banheiro. Tudo isso segurando a cesta com os chocolates pendurada em uma das patas. Ele sabe que eu gosto de Ouro Branco e Diamante Negro. Meus lábios sorriem sem que eu perceba.
Toda a vez que degusto um chocolate, minha memória saboreia com gosto as lembranças da infância. Tempo em que tudo era fantástico e possível. Não me preocupava com o que seria quando crescesse. Tinha a tranquila noção de que estaria protegida. Eu nem sabia que existia algo do que se proteger. Minhas amigas brincavam com as jóias, maquiagens e scarpins de suas mães. Transformavam-se em mini-adultas. Não me lembro de ter essas passagens. Na adolescência, as meninas queriam logo chegar aos dezoito, aos vinte e um. Usavam batom vermelho e salto alto para conseguirem entrar nas boates sem que o segurança pedisse a carteira de identidade.
Sempre andei na direção contrária. Por que deixar de ser criança? Não ter contas para pagar, não sofrer por amor, não pensar que existem perigos no mundo. Ser criança é ignorar a diferença entre a fantasia e o real. Somos mais espontâneos, mais criativos. Por mais duras que soem, nossas palavras são engraçadas. E sinceras. Os pais acham bonitinho, até incentivam. Esse conjunto de fatos me faz sentir saudade dos cinco anos. No meu guarda-roupa de adulta tenho várias máscaras: a do trabalho, a da faculdade, a da família. Qual delas será a mais transparente? Se é que alguma delas pode ser.
Fui muito mais eu quando minha única máscara era a da Mulher Maravilha. Quando eu acreditava que podia voar e que no próximo ano o coelho faria a mesma travessia para garantir mais uma Páscoa feliz.
De volta ao de sempre
Renata tem um dom não muito especial: desgastar a paciência daqueles que desfrutam do seu convívio. E isso começou bem antes dela vir ao mundo. Chutava tanto a barriga de sua mãe que a coitada tinha dores abdominais terríveis. Ah, se fosse um menino! Pelo menos poderia ser o novo Fenômeno do futebol. Em seu trabalho, toda vez que um colega fala alguma bobagem, ela diz: Lamentável! Mas, antes ouvir isso que ser surda, né? Nas reuniões de família, ela sempre pede um minuto de atenção para declarar que este é o melhor almoço de todos os já ocorridos, concluindo com uma risada seguida de um desatar de lágrimas. Para Renata, todo o primeiro encontro é um momento de causar impacto. Tamanha é a sua necessidade, que a moça quase deixa seus pretendentes sem olfato. O aroma do seu impacto anuncia a sua chegada muito antes dela acontecer.
Depois de encontros sem continuidade, olhares tortos no escritório, e conversas paralelas ao redor da mesa de domingo, Renata percebeu que havia algo errado. Foi então que ela mudou. Ao ouvir a primeira bobagem no trabalho, fingiu estar desatenta. Passaram-se muitas outras sandices e nada de manifestação. No almoço em família, foram direto para a sobremesa. Para o encontro seguinte, Renata usou apenas um hidratante de perfume suave, como se fosse o da própria pele. A família pensou que a refeição não era mais a melhor de todas, e os colegas acreditaram que estavam falando sério demais. O próximo encontro virou namoro.
Mesmo encontrando um par, Renata carregava um sentimento estranho. Era como se sua vida estivesse acontecendo sem ela. Sentia falta de suas costumeiras intervenções. A família e os colegas também. Suas participações especiais chateiam, mas, quem não incomoda de vez em quando? Foi no seu primeiro aniversário de namoro que Renata teve certeza de que era hora de recuperar a identidade engavetada. Carlos parou o carro em frente a sua casa e, depois de um beijo, veio o presente e a fatídica frase: – Você é linda, mas, desde nosso primeiro encontro, sinto que falta alguma coisa. A namorada desembrulha o pacote com as mãos trêmulas e, surpresa! Um frasco do seu Kenzo preferido. E, junto com ele, um intenso aroma de liberdade.
A gente se acostuma com o fim do mundo
– Largue ela.
– Vai ser difícil. Ela já foi embora.
– Há quanto tempo?
– Cinco dias. Não tenho nem mesmo como deixá-la. Não tenho nem mesmo como brigar com ela. É frustrante.
– Então, encontre-a, e depois você larga.
Martin Page
O que podemos
fazer ou falar é escrever, é transformar nossa ansiedade em palavras. Moacyr Scliar